Na ânsia de querer apagar tudo anterior a 2017, o presidente João Lourenço, formado em História, transformou-se num revisionista.
Por Emídio Fernando (*)
Director da Rádio Essencial
O historiador João Lourenço está a permitir que o MPLA dê verdadeiros pontapés na história do partido, que ele lidera. E assim vai permitindo que Angola entre por caminhos de discussão ideológica, a roçar as estratégias da extrema-direita europeia.
Nos últimos tempos, Angola tem assistido – melhor, uma certa Angola que se preocupa com assuntos políticos e medra nas redes sociais – a uma campanha de ‘vale tudo’ contra o actual líder da UNITA. Ora, porque terá nascido em Cabo Verde e não em Angola; ora, porque não consegue demonstrar que os pais são genuinamente angolanos; ora, porque teve, até há bem pouco tempo, dupla nacionalidade, acumulando a angolana com a portuguesa.
Os termos dos ataques chegam até a questionar a cor de pele e – imagine-se! – a ausência do sotaque bantu. O que faz dele, portanto, um falso angolano.
Há quem entenda que este repentino ataque é apenas sinónimo de desespero. O MPLA ainda não sabe como lidar e como tornear a popularidade de Adalberto Costa Júnior, sobretudo nas zonas urbanas, as mais populosas e as mais contestatárias. Numa altura que o país enfrenta uma crise económica gravíssima e que todos os dias se agrava, ainda se torna mais difícil combater essa popularidade.
Esta estratégia nem é inédita em Angola. Durante anos, a UNITA foi afirmando que o então presidente do MPLA e de Angola, José Eduardo dos Santos, não era angolano, mas sim são-tomense. Hoje, sente o efeito boomerang. O inesperado, no entanto, é essa ideia do MPLA de usar a mesma estratégia, com os mesmos argumentos, contrariando-se a si próprio, dando violentos pontapés na história e verdadeiros tiros nos pés.
Os tiros nos pés são mais evidentes na argumentação de que Adalberto Costa Júnior não é um verdadeiro angolano por causa do… sotaque. Naturalmente, que é uma crítica dirigida a todos aqueles que falam, como se diz nos bairros de Luanda, como se “tivessem engolido um português”. Mas é só ouvir os principais dirigentes do MPLA, em especial ministros, para se perceber que andam a “engolir portugueses”.
O mais irónico, no entanto, é o recurso à cultura bantu, como símbolo da nacionalidade. Quem o defende, entre dirigentes e deputados, esquece-se de olhar para os nomes dos dirigentes dos dois partidos. Enquanto os apelidos no MPLA andam à volta dos Santos, Lourenços, Vieiras Dias, Van Dunem, os da UNITA passam por Chingunjis, Katchiungos, Savimbis, Samakuvas, Dembos… Os primeiros têm origem europeia. Os segundos do interior de Angola. Bantu, portanto.
Pouca gente dúvida de que esta sanha por Adalberto Costa Júnior tem o dedo, ou a mão completa, do Gabinete de Acção Psicológica e Informação da Casa de Segurança, órgão sob a dependência directa de João Lourenço. Ao gabinete, escapou o “detalhe” dos apelidos, como escapuliu-se o “pormenor” de negar a própria história do MPLA.
Em Agosto de 1975, poucos meses antes da proclamação da independência, Agostinho Neto, sem qualquer vestígio de sotaque bantu, alertava para que se evitasse a todo o custo a balcanização de Angola e reforçava o cariz do MPLA: um movimento de libertação em que cabiam negros, mestiços e brancos e todos aqueles que amavam Angola e tinham interesse em desenvolver o país. Ideias reforçadas em diversos comícios, no discurso na própria noite que proclamou a independência e em entrevistas.
Em termos práticos, a origem do MPLA, da criação à formação ideológica, teve a decisiva contribuição de mestiços e brancos, defensores da independência e assumidamente anti-coloniais. A fundação do movimento, que congregou os muitos movimentos que contestavam a política colonial, partiu da iniciativa, entre outros, de mestiços como Viriato da Cruz, Lúcio Lara e Azancot de Menezes a que se juntaram brancos, ao longo dos anos, como António Jacinto, ‘Iko’ Carreira, Adolfo Maria, Pepetela, Paulo Jorge, Edmundo Rocha, Hermínio Escórcio. Isto apenas para citar alguns dos milhares de brancos, netos e filhos de colonos, que entenderam Angola como sua e com o direito de ser independente. Alguns deles até nascidos fora de Angola, mas que sempre se assumiram como angolanos. E quase todos eles sem o sotaque bantu. Apelar à angolanidade através da cor da pele e pelo sotaque é apenas dar mais um pontapé na história.
O rumo de Angola teria sido outro se, a seguir à morte de Agostinho Neto, o MPLA seguisse a lógica de sucessão. Ou mais do que isso, o poder tivesse sido entregue a quem, de facto, marcava o ritmo do MPLA e lhe desenhava a estratégia desde a fundação: o mestiço Lúcio Lara. Era ele o baluarte da ideologia e práxis do movimento e, depois, a partir de 1977, do MPLA-Partido do Trabalho. Foi apenas o fervor revolucionário de Lúcio Lara, baseado na convicção de que África, a libertar-se do colonialismo, não estava preparada para ter um presidente não-negro, que travou o que toda a gente esperava. Não assumiu a presidência do partido e, por consequência do país, mas foi ele que indicou José Eduardo dos Santos para suceder a Agostinho Neto. Aliás, como já o tinha feito na escolha do ex-presidente da República para cargos de direcção do MPLA ainda em Leopoldville (hoje Kinhasa) e para ministro das Relações Exteriores.
De novo, um dos mestiços, e com fraco sotaque bantu, foi decisivo na História de Angola e do MPLA.
Adalberto Costa Júnior cometeu um erro ao não renunciar à nacionalidade portuguesa há mais tempo e de só o ter feito quando assumiu a presidência da UNITA. A Constituição angolana impede que alguém com dupla nacionalidade possa ser candidato a Presidente da República. O líder da UNITA sabia disso, só que não contava, ou negligenciou, que isso poderia servir de arma de arremesso do MPLA. É preciso, no entanto, recorrer à História para perceber em que circunstâncias o líder da UNITA foi português. Antes dos acordos de paz, assinados em 2002, os dirigentes da UNITA estavam impedidos de ter qualquer documento oficial de Angola. A maior parte deles adquiriu nacionalidades ‘oferecidas’ por governos amigos da UNITA. Entres eles, alguns de Portugal que facilitaram a vida aos dirigentes do ‘galo negro’.
E aqui, mais uma vez, o MPLA dá um pontapé na história, não a do partido, mas a do país. E acorda fantasmas que os angolanos, há quase 20 anos, tentam esquecer.
Na ânsia de querer apagar tudo anterior a 2017, o presidente João Lourenço, formado em História, transformou-se num revisionista. Mal chegou ao poder, “inventou” uma primeira liderança ao MPLA, atribuindo-a a Ilídio Machado. Uma contradição com a historiografia do MPLA: Ilídio Machado, em 1958, era presidente do Movimento para a Independência de Angola (MIA). O MPLA, de acordo com a sua história oficial, mas sem documentos que o comprovem, foi criado em 1956. Por sua vez, o MIA foi um dos movimentos que viriam a formar o MPLA.
Uma confusão histórica em que João Lourenço se meteu, mas que ele acredita que o ajuda a ser visto como um reformador. Mesmo que, para isso, tenha de pontapear a História.
(*) Artigo publicado no jornal português Público (28 de Fevereiro de 2021).
Nota: Ilustração da responsabilidade do Folha 8.